sábado, 5 de dezembro de 2009

Financiamento da Vida

David Capistrano Filho no final da década de 1990, fazendo alusão à privatização da saúde em outro país da América do Sul, manifestou sua opinião sobre o nosso país nos seguintes termos: no Brasil não existe possibilidade de privatizar a saúde por decreto.

Naquele momento histórico, este sanitarista que é referência de uma geração de pessoas que lutam pelo Sistema de Saúde nacional público e universal, portanto, por um sistema para todos os brasileiros e todas as brasileiras, superestimava a capacidade de resistência da esquerda e subestimava a capacidade de cooptação pela direita de amplos setores da esquerda, inclusive de sanitaristas, e a capacidade destrutiva socialmente falando da ação da direita brasileira.

Daquele momento até o presente, paulatinamente, veio se agudizando o duro combate político que, já a partir de 1990, se dava em torno do Sistema de Saúde nacional em meio a um movimento com dinâmica contraditória.

O fato: as elites econômicas e políticas brasileiras, apesar do reconhecimento da saúde como direito social e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) advindos com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF de 1988), declararam uma guerra surda contra a implantação do Sistema de Saúde público e universal no país.


Já no orçamento da União para 1989 a nefasta ação destas elites conservadoras se fez sentir: iniciaram o movimento para inviabilizar a implantação do SUS sonegando-lhe provisão orçamentária no nascedouro. Simples assim.

Deste modo, não foi surpreendente adentrar-se o ano de 1990 com denúncias recorrentes de queda da qualidade no atendimento, atraso do pagamento de contas ambulatoriais e hospitalares, descredenciamento de hospitais, o encerramento de serviços de urgência nos hospitais de várias Santas Casas e fenômenos de desassistência aos usuários. Tratou-se de um sucateamento deliberado que está na origem do subfinanciamento crônico do SUS.

Dois exemplos ilustrativos deste estado de coisas. No início de janeiro de 1990, o então Secretário de Higiene e Saúde de Santos, David Capistrano Filho, denunciou a morte de quatro pacientes em função da recusa de atendimento por parte dos hospitais filantrópicos da cidade, de acordo com o que se constata no noticiário da época (Figura 1). Dias depois, a prefeita de Santos, Telma de Souza, decretou o estado de calamidade pública na municipalidade por inexistência de vagas para a internação hospitalar (Folha de S. Paulo. 17/01/1990).

O noticiário de maio deste mesmo ano continha a informação de que o INAMPS havia registrado a 33ª morte de paciente no posto de urgência da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, paciente esse que, após percorrer vários hospitais da cidade, chegou sem vida nessa Unidade de Urgência e Emergência (Figura 2).

Contudo, as forças progressistas se empenharam em implantar o SUS e, ainda que lutando e operando contra a maré neoliberal durante toda a década de 1990, acelerou-se o processo de inclusão social pelo sistema público de saúde brasileiro, o que já vinha se dando desde o início dos anos 1980.

Durante esta década, enquanto travava-se difícil luta para implantar o SUS com poucos recursos, parlamentares petistas e outros parlamentares progressistas ou vinculados ao setor apresentaram projetos de lei que disciplinavam o financiamento da saúde pelos três entes federados.

Enfim, quando se deu a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 29/2000, o governo federal impôs sua esperteza ao introduzir o cálculo da sua contrapartida com base na variação nominal do PIB (menor que o crescimento populacional e o da inflação), pressionando para a aplicação de percentual sobre a arrecadação somente para os estados, Distrito Federal e municípios, respectivamente, de 12% e 15%. Explica satisfatoriamente porque se denominou de esperteza o fato do ente federado que mais arrecada e retém tributos, a União, ter vinculado sua contrapartida à variação nominal do PIB a evolução decrescente da participação federal no financiamento do setor saúde, expressa no Quadro 1.

À esta estratégia federal, coerentemente mantida nos anos 1980, 1990 e 2000 (Quadro 1), se acoplou, após a provação da EC 29/2000, o descumprimento pela maioria dos estados brasileiros da obrigação constitucional de alocar o percentual mínimo dos seus impostos na saúde, além do emprego de recursos do SUS para pagamento dos servidores inativos, saneamento básico e outras despesas não afetas ao setor saúde, sob a complacência, no plano federal, do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.

Em síntese: para começar a enfrentar o subfinanciamento crônico do SUS urge que seja regulamentada as disposições inseridas na Constituição Federal pela EC 29/2000, a fim de, centralmente, definir o que são ações e serviços públicos de saúde e estabelecer as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com ações e serviços públicos de saúde nas três esferas de governo.

Quadro 1 – Aplicação de recursos no setor saúde, segundo esfera de governo em anos selecionados.

Em síntese: para começar a enfrentar o subfinanciamento crônico do SUS urge que seja regulamentada as disposições inseridas na Constituição Federal pela EC 29/2000, a fim de, centralmente, definir o que são ações e serviços públicos de saúde e estabelecer as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com ações e serviços públicos de saúde nas três esferas de governo.

Quadro 1 – Aplicação de recursos no setor saúde, segundo esfera de governo em anos selecionados.
Ano
União
Estado
Município
1980
75,00%
17,80%
7,20%
1995
63,80%
18,80%
17,40%
2000
59,74%
18,53%
21,73%
2001
56,17%
20,67%
23,16%
2002
53,11%
21,64%
25,25%




Fonte: Carvalho, G. Gasto com saúde no Brasil em 2007.

* Ricardo Menezes é médico sanitarista.

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