sábado, 5 de dezembro de 2009

DEFENDEMOS O SUS: DEFENDEMOS A VIDA

A saúde como direito social somente foi reconhecida no Brasil com a promulgação, em 5 de outubro de 1988, da Constituição Federal, na qual foram também inscritos os princípios essenciais do Sistema Único de Saúde (SUS). Tais princípios foram incorporados nas constituições dos estados e do Distrito Federal em 1989 e regulamentados, no plano federal, somente em 1990, com a edição das Leis Orgânicas da Saúde (Lei n. º 8.080, de 19/9/90 e Lei n. º 8.142, de 28/12/90). Ainda em 1990, os princípios do SUS foram incorporados às Leis Orgânicas de vários municípios brasileiros. Em síntese, está em vigência há pouco mais de 17 anos o arcabouço jurídico-normativo que propiciou o início da luta pela construção do SUS.


Na Constituição Federal de 1988 reconheceu-se que “saúde” é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, conforme disposto no Art. 196. Reconheceu-se, ainda, a relevância pública das ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado, disposição do Art. 197.

Não deve causar espanto o fato do reconhecimento do direito à saúde no Brasil ter se dado, numa perspectiva histórica, tão recentemente. Afinal, esse é mais um componente dos traços característicos do desenvolvimento nacional conduzido pelas tradicionais - e conservadoras - elites econômicas e políticas do país: pífia distribuição de renda, profunda desigualdade social e arraigado autoritarismo na condução dos assuntos públicos.

A primeira década de existência do SUS foi de uma luta muito dura, porque sua construção deu-se na contramão da vontade política do poder executivo federal e, sobretudo, daqueles que ditavam as regras da política econômica do país. Melhor exemplo disso: relativa previsibilidade de fontes de recursos para a organização do Sistema Único de Saúde só veio a ocorrer em setembro de 2000, quando se aprovou a Emenda Constitucional n. º 29/2000, que prevê a vinculação progressiva dos impostos dos municípios, dos estados, do Distrito Federal e da União, com a finalidade de assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde.

Destaque-se que se observou nos anos 1990 o redirecionamento do papel do Estado, influenciado pela política de ajuste neoliberal que tinha como pressuposto a Reforma do Estado, pois esse teria “se desviado” de suas funções básicas ao ampliar sua presença no setor produtivo. Dessa forma, o Estado deveria deixar de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social para tornar-se o promotor e regulador, transferindo para o setor privado as atividades que antes era de sua responsabilidade.

O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma política pública recente, justa e racional. Uma reforma social incompleta e com implantação heterogênea conforme a região do país, mas que, em poucos anos, construiu um sólido Sistema de Saúde que presta significativos serviços à população brasileira. De acordo com dados disponíveis em 2006, o SUS tinha uma rede de mais de 60 mil unidades ambulatoriais e de cerca de seis mil unidades hospitalares, com quase 450 mil leitos. Sua produção anual era de 11,7 milhões de internações hospitalares; um bilhão de procedimentos de atenção primária à saúde; 153 milhões de consultas médicas; dois milhões de partos; 150 milhões de exames laboratoriais; 132 milhões de atendimentos de alta complexidade, e 12 mil transplantes de órgãos em 2005.

Agregue-se a isso, a execução de um conjunto de atividades e ações de vigilância epidemiológica (controle de doenças) e - frise-se - de vigilância sanitária, sendo que essas últimas destacam-se na Lei Orgânica da Saúde (Lei n. º 8.080, de 19-9-90, Art. 6º, §1º) como constitutivas de um campo de atuação destinado a ser um instrumento em defesa da vida das pessoas, ou seja, capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo: a) o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionam com a saúde, compreendendo todas as etapas e processos da produção ao consumo; e b) o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde.

Além disso, no curto período de construção do SUS, deu-se o impacto positivo nos indicadores de saúde, tais como: redução da mortalidade infantil, redução da mortalidade materna, redução de mortalidade proporcional de doenças infecciosas e parasitárias e o aumento da esperança de vida ao nascer da nossa população. O Sistema é avaliado positivamente pelos que o utilizam rotineiramente e tem capilaridade em todo o território nacional. Não obstante estes inegáveis avanços, o SUS enfrenta grandes desafios para a sua consolidação definitiva que precisam ser superados com desassombro e firmeza política e - centralmente - com a arrojada e criativa participação da sociedade brasileira.


Defendemos, entre outras medidas, o cumprimento dos termos da Emenda Constitucional n. º 29, que disciplinou o financiamento das ações e serviços públicos de saúde e a aprovação do Projeto de Lei Complementar que regulamenta o controle da alocação pelos estados (12%) e pelas municipalidades (15%) dos percentuais de recursos orçamentários obrigatórios, bem como o gradativo aumento do percentual alocado pela União, projeto esse que já foi aprovado no Senado Federal e encontra-se na Câmara dos Deputados para ser apreciado.

A aprovação do Projeto de Lei Complementar citado, que regulamenta a Emenda Constitucional nº 29/2000, é crucial para a manutenção, sem descontinuidade, da prestação de serviços, pelo SUS, à população brasileira, ou seja, o aporte de montante novo de recursos é vital para evitar a introdução de grave elemento de desestruturação no que, às duras penas, vimos construindo e estruturando desde 1991.

As justificativas para adoção de Sistemas de Saúde assentados em valores de mercado e individualistas, segundo os quais, ao instituírem-se sistemas privados para quem pode pagar por serviços de saúde sobrariam mais recursos públicos para dar melhor atenção aos menos favorecidos economicamente, não encontram respaldo na experiência internacional. Ao contrário, as evidências internacionais mostram que esse raciocínio é totalmente equivocado, pois, ao criar-se um subsistema público especial para as pessoas menos favorecidas economicamente, dada a pouca capacidade desses grupos de articular os seus interesses e de vocalizá-los politicamente, esse subsistema tende a ser sub-financiado e a ofertar serviços de menor qualidade.

Observa-se no Sistema Único de Saúde (SUS) tanto o crescimento quanto a existência de problemas - os quais derivam do fato do modelo de atenção brasileiro passar por um período de transição - que demandam urgentes correções, a saber:

a) A atenção primária - a porta de entrada do Sistema - vem crescendo, porém com velocidade e qualidade insuficientes, o que aponta a necessidade de acelerar o ritmo de seu crescimento, ao lado de rearranjo organizacional que venha a possibilitar o atendimento ágil de pessoas, de todos os grupos ou classes sociais, que procuram os serviços de saúde demandando cuidado e assistência para uma dor, um episódio de ansiedade, a febre do filho, casos dentre outros que poderíamos classificar como momentos de demanda espontânea. Além disso, é fundamental garantir o atendimento continuado aos grupos de maior risco. A consolidação e a qualificação da “porta de entrada” do sistema requerem que, em determinadas situações, as unidades ambulatoriais do SUS funcionem também nos finais de semana e feriados, bem como a ampliação da incorporação tecnológica e de sua capacidade resolutiva. A Rede de Serviços de Saúde de atenção primária não deve ser organizada para cobrir somente as populações de baixa renda, ou seja, não deve constituir-se em expressão de políticas de focalização.Ainda quanto à porta de entrada do Sistema, sua consolidação e qualificação exigem que a solicitação de exames de apoio diagnóstico e terapêutico e a prescrição de medicamentos e insumos diversos somente deva se dar para usuários de estabelecimentos de saúde do SUS. O acesso ao SUS é universal, mas pressupõe a entrada do paciente na sua rede de serviços, de acordo com regramentos administrativos.

b) No que se refere à integralidade da assistência, esta deve se pautar por regulamentação técnica, protocolos de conduta, provisão de recursos financeiros, planejamento centrado na epidemiologia e sua materialização na elaboração de plano de saúde, o que necessariamente deve ser objeto de pacto entre as esferas de governo envolvidas e as instâncias de participação popular.

c) É imperioso um forte movimento no sentido de maior valorização da função clínica da atenção primária;

d) Os processos de regionalização e integração do SUS devem ser reorganizados e qualificados no que se refere à eficácia e eficiência de hospitais, Unidades de Urgência e Emergência (Pronto Socorros) e outros serviços de saúde. Para isso é fundamental que as Secretarias Estaduais de Saúde assumam seu papel de coordenação do processo de construção das Regiões de Saúde. Os Centros Ambulatoriais Especializados devem ser resolutivos, ou seja, devem contar com os recursos de diagnóstico e de terapia que possam funcionar em suas dependências, de modo a não submeter pessoas já vulnerabilizadas pela enfermidade aos transtornos de sucessivos deslocamentos entre um serviço de saúde e outro. O mau funcionamento das organizações públicas, ou de organizações privadas contratadas pelo Poder Público, comprometem a credibilidade do SUS;

e) O Ministério da Saúde, por intermédio da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), deve ampliar vigorosamente as atividades de ressarcimento ao SUS, previstas na legislação em vigor, mediante o cruzamento dos bancos de dados de usuários de operadoras de planos e seguros de saúde e dos bancos de dados de usuários atendidos nos estabelecimentos de saúde do SUS. Destaque-se que a ANS não vem cumprindo uma de suas atribuições precípuas ao não realizar ainda as atividades de ressarcimento ao SUS decorrentes da assistência a usuários de operadoras de planos e seguros de saúde assistidos nos estabelecimentos do SUS que prestam serviços de saúde de alta complexidade (hemodiálise, oncologia, atenção ao paciente portador de HIV/AIDS, hemoterapia e outros) e de urgência e emergência;

Não cabe endossar a tese de que o SUS vive um dilema gerencial, o que seria uma simplificação da realidade bem mais complexa. Cabe aos dirigentes do SUS, nas esferas municipal, estadual e federal:

a)discutir criativamente soluções para as dificuldades operacionais, inclusive questões gerenciais relativas aos estabelecimentos de saúde, públicos e privados, e órgãos que o compõem;

b)discutir nova política de pessoal - com concurso público, salários dignos e carreiras - com a garantia de controle dos usuários sobre os serviços prestados pelos trabalhadores da saúde, além de políticas de recrutamento e de educação continuada estaduais e nacional.

No que se refere ao trabalho em saúde é importante ainda destacar os seguintes pontos, a saber:

a) houve importantes iniciativas no governo Lula para melhorar a política de saúde, como o investimento na política de formação dos profissionais de saúde (educação permanente), busca do resgate de ideais da reforma sanitária, a reafirmação da importância da participação da comunidade, reorganização do organograma do Ministério da Saúde, de forma a unificar políticas e dar mais dinamicidade ao SUS. Entretanto, a falta de embate em relação a elementos da atual política econômica dificultou o avanço e a busca de soluções para a questão da precarização do trabalho na saúde;

b) um primeiro desafio é o de enxergar o trabalhador e a trabalhadora da saúde enquanto trabalhador e trabalhadora e não mais como um recurso humano. A partir desse novo conceito podemos encarar a tarefa de mudar os processos de trabalho na saúde, muitas vezes alienantes e ou desumanos. As mudanças do modelo de atenção dependem da adesão dos trabalhadores e trabalhadoras e isso só é possível com a valorização, desprecarização e educação permanente;

c) com a ampliação da atenção primária se faz urgente a discussão da questão do vínculo empregatício de determinadas categorias de trabalhadores da saúde;

Devemos discutir a necessidade de manutenção e ampliação de uma importante esfera estatal de prestação de serviços no SUS, porém com mecanismos de gestão participativa e sem fenômenos similares à existência de "dupla porta". Ao introduzir no interior do Sistema Público de Saúde a lógica de mercado, não universal, “a dupla porta” pode dar ensejo à ocorrência de desigualdade de acesso.
Impõe-se discutir as bases da Lei de Responsabilidade Fiscal e suas conseqüências no caso específico do setor saúde.

É vital o intenso protagonismo do movimento sindical, do movimento estudantil, de movimentos populares, de entidades de profissionais de saúde, de instituições de ensino e pesquisa do campo da saúde e de outros atores sociais para que o SUS seja, de fato, o sistema de saúde deste país.

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