sábado, 5 de dezembro de 2009

SUS: Um Novo Ataque!

Ricardo Menezes*

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (Art. 196. Constituição Federal de 1988)

Há dois séculos homens e mulheres que lutavam por um mundo que se estruturasse tendo como pilar da organização em sociedade a radical defesa da vida de todas as pessoas, atinaram para a determinação social e econômica que ensejava a exposição da esmagadora maioria da população a toda sorte de riscos à sua saúde e à sua vida. Mas não só: perceberam que a luta pela superação das desigualdades socioeconômicas era insuficiente para preservar a saúde, manter a vida e propiciar o bem-estar coletivo sem que, paralelamente, se instituísse uma rede de prestação de serviços, distribuída pelo território do Estado nacional, que propiciasse às pessoas o acesso universal e igualitário às ações e serviços destinados à promoção, proteção e recuperação da saúde. Os Sistemas de Saúde socializados, portanto, universais, implantados particularmente em países europeus do início do século passado até a década de 1970, constituíram-se na materialização da solução para essa percepção – a necessidade de instituir-se uma rede de prestação de serviços de saúde nacional e de acesso igualitário –, cujos defensores foram os partidos políticos que buscavam a transformação social, o movimento sindical e a intelectualidade progressista.


No Brasil, os constituintes eleitos em 1986, em meio ao complexo processo de luta política que havia levado à derrocada o regime militar, à participação e pressão popular visando a democratização do país em todas as suas dimensões e à falência da política de saúde excludente implementada no período (1964-1984), inscreveram na Constituição Federal de 1988 (CF de 1988), pela primeira vez na história do país, o reconhecimento da saúde como direito social, conforme evidenciamos em epígrafe. E mais: dispuseram sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) nos seguintes termos: “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e participação da comunidade” (Art. 198 da CF de 1988).

A moldura na qual se inseriram o reconhecimento da saúde como direito social e a criação do SUS, de um lado, era assim enfatizada: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros [...]” (Art. 197 da CF de 1988). De outro lado, inseria-se a saúde no texto constitucional no conjunto integrado de ações denominado seguridade social – saúde, previdência e assistência social – (Art. 194 da CF de 1988), a qual deveria ser “financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I) do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

b) a receita ou o faturamento;

c) o lucro;

II) do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social;

III - sobre a receita de concursos de prognósticos;

IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar (Art. 195 da CF de 1988).
Impõe-se chamar a atenção: antes da criação do SUS o direito a saúde, no que se refere ao seu componente assistencial, era garantido para quem? Atentem: a) para aqueles que tinham capacidade de pagar através de suas próprias fontes de renda; b) para aqueles que se inseriam no setor formal do mercado de trabalho e suas famílias, aos quais era garantido o acesso a assistência médica através da previdência social e c) para aqueles que tinham algum tipo de proteção institucional (plano ou seguro de saúde) financiado por ele mesmo, por sua empresa ou por terceiros.

Ou seja, uma grande parcela da população brasileira – que não se inseria no mercado formal de trabalho, não tinha renda para pagar por sua proteção à saúde ou não tinha nenhuma empresa ou instituição que velasse por sua saúde – poderia acessar aos serviços prestados pelos estabelecimentos de saúde públicos da administração direta (Ministério da Saúde e secretarias estaduais e municipais de saúde) ou contar com a caridade provida pelos hospitais filantrópicos, como as Santas Casas. No entanto, tanto os estabelecimentos de saúde públicos da administração direta quanto os hospitais filantrópicos, tinham papel residual na oferta de saúde no país e não eram suficientes para cobrir uma volumosa população de trabalhadores e trabalhadoras do setor informal do mercado de trabalho que vivia nas periferias das grandes regiões metropolitanas, nas pequenas cidades e vilas e nas regiões rurais (Médici, A. Breves Considerações sobre a Relação entre Financiamento da Saúde e Direito Sanitário no Brasil, 2009).

Contudo, a elite brasileira se empenhou em estrangular a implantação do SUS, sonegando-lhe provisão orçamentária. A título de ilustração: no Art. 55 das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, os constituintes inscreveram o seguinte: “Até que seja aprovada a lei de diretrizes orçamentárias, trinta por cento (30%), no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído o seguro-desemprego, serão destinados ao setor de saúde”. Mas o poder executivo federal, em particular aqueles dirigentes que ditavam as regras da política econômica do país, descumpriram a disposição constitucional e o sistema entrou em colapso no seu nascedouro – simples assim.

Em que pese o interdito das elites conservadoras brasileiras à célere implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) para todos os brasileiros, seguindo a melhor tradição dos sistemas de saúde socializados – mais eficientes, eficazes, qualificados, racionais e justos do que os sistemas de saúde de mercado –, em 2003 o SUS, embora se constituísse em política pública recente e conformasse uma reforma social incompleta e com implantação heterogênea conforme a região do país, já configurava um sólido sistema de saúde com capilaridade em todo o território nacional e que prestava significativos serviços à população brasileira – serviços de assistência, inclusive a terapêutica, de vigilância epidemiológica (controle de doenças) e de vigilância sanitária (campo de intervenção na realidade sanitária destinado a ser um instrumento em defesa da vida das pessoas) –; havia impactado positivamente os indicadores de saúde e era avaliado positivamente pelos que o utilizavam rotineiramente. Não obstante esses inegáveis avanços, o SUS enfrentava – e continua enfrentando! – grandes desafios para a sua consolidação definitiva que precisam ser superados com desassombro e firmeza política.

Nos últimos seis anos, iniciativas inovadoras se deram no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo muitas delas decorrentes do protagonismo do Ministério da Saúde. Apesar disso, milhões e milhões de brasileiros ainda não tem acesso à denominada porta de entrada do sistema (atenção primária); a atenção primária requer reorganização que a torne mais resolutiva, qualificada e o acesso ágil, incorporando também setores das camadas médias que demandam utilizar os serviços prestados pelo SUS; o sub-sistema de atendimento às urgências e emergências, inclusive a remoção de pacientes, não está implantado no país como um todo, entre outros relevantíssimos problemas de saúde que estão a demandar urgentes soluções.

No entanto, embora soluções urgentes de problemas de saúde exijam recursos, porque esse setor de prestação de serviços é intensivo em utilização de mão-de-obra e em incorporação de tecnologias – de processo e de produto –, paradoxalmente, no período (2003-2008), os Ministérios do Planejamento e da Fazenda, exerceram pressão sobre o Congresso Nacional para que não se regulamentasse a Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, incluindo-se para a esfera federal o justíssimo cálculo de sua contrapartida, no financiamento do SUS, baseado no percentual sobre a arrecadação.

Um certo fundamentalismo econômico desses ministérios chegou até a constranger politicamente o presidente Lula, no início do primeiro mandato, quando foi proposta uma peça orçamentária que extraía recursos para o programa Fome Zero – uma das principais prioridades do governo – do orçamento da saúde, o que obrigou o presidente a determinar a reelaboração da peça orçamentária.

Neste período, dois parlamentares petistas apresentaram projetos de lei complementar regulamentando o financiamento da saúde: o ex-deputado federal Roberto Gouveia (PT-SP) e o senador Tião Viana (PT-AC). O projeto de lei complementar de autoria do senador foi aprovado por unanimidade no Senado Federal em abril de 2008 e encontra-se parado na Câmara dos Deputados. Nele é disciplinado o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) ou, mais precisamente, é regulamentada a redação acrescida à Constituição através da Emenda Constitucional nº 29/2000, que instituiu a vinculação da alocação de recursos orçamentários com a finalidade de assegurar os recursos mínimos para as despesas com ações e serviços públicos de saúde. O conteúdo desse projeto é o seguinte:

a) mantém o montante de recursos orçamentários que, de acordo com a Constituição, obrigatoriamente, as municipalidades, os estados e o Distrito Federal devem alocar anualmente no setor saúde, ou seja, respectivamente, 15% e 12%;

b) altera o método de cálculo da alocação de recursos orçamentários da União, que passaria a ser de 10% de suas receitas correntes brutas (esse percentual evoluiria de, no mínimo, 8,5% em 2008, para 9% em 2009 e 9,5% em 2010, alcançando 10% em 2011) (atentem para a evolução da aplicação de recursos no setor saúde, segundo esfera de governo – 1980-2002, no Quadro ao lado, extraído de Carvalho, G. Gasto com saúde no Brasil em 2007);
c) institui normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal, o que ainda não está regulamentado.

Hoje, em meio à crise mundial do capitalismo, o SUS encontra-se diante de uma nova e preocupante ameaça. O projeto de emenda constitucional (PEC) que trata da reforma tributária, em discussão na Câmara dos Deputados, representa um grave retrocesso para todo o campo da proteção social – seguridade social (saúde, previdência e assistência social) –, educação e trabalho, pois, caso seja aprovado como está, extinguirá as fontes exclusivas e específicas de recursos para as políticas sociais e, assim, áreas do campo da proteção social não poderiam mais ser priorizadas, ou seja, a reforma dará tratamento de igualdade a ações e prioridades desiguais.

Ademais, o PEC da reforma tributária não aponta para a construção de um sistema tributário progressivo, pautado pela tributação da renda e do patrimônio, porém as modificações propostas afetam diretamente a estrutura de financiamento das políticas sociais, particularmente, os recursos vinculados ao custeio da seguridade social, educação e trabalho. Os principais pontos da reforma tributária são:

a) a criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA-F), com a extinção de quatro tributos federais (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS –, a contribuição para o Programa de Integração Social – PIS –, a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de combustíveis – CIDE – e a Contribuição Social do Salário-Educação);

b) a incorporação da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ);

c) a redução gradativa da contribuição dos empregadores para a Previdência Social, a ser realizada nos anos subseqüentes à aprovação da reforma, o que demandaria o envio de um projeto de lei ao Parlamento após a promulgação do PEC;

d) a unificação da legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), a ser realizada por meio de lei única nacional e não mais por 27 leis das unidades da federação;

e) a criação de um Fundo de Equalização de Receitas (FER) para compensar eventuais perdas de receita do ICMS por parte dos estados.

Em outras palavras, estas modificações significam o sepultamento da diversidade de bases de financiamento da seguridade social inscrita no Art. 195 da Constituição Federal (CF) de 1988, que ampliou o financiamento da previdência, saúde e assistência social para além da folha de salários, incluindo, a receita, o faturamento e lucro (INESC - Instituto de Estudos Socioeconômicos. Reforma tributária desmonta o financiamento das políticas sociais, 2008).

Face ao exposto, defrontamo-nos com algumas prioridades no que se refere à defesa, ampliação e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), a saber:

1) continuar pressionando para que se aprove o projeto de lei complementar que disciplina o financiamento da saúde e institui normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal (Projeto Tião Viana), parado na Câmara dos Deputados;

2) continuar pressionando, através do esclarecimento e de mobilizações sociais amplas, para alterar o projeto que trata da reforma tributária nos pontos acima mencionados, que se referem ao campo da proteção social, pois, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, não se vê proposição que possa gerar tamanho retrocesso para os direitos à saúde e à vida da população brasileira, conquistados depois de décadas e décadas de muita luta;

3) no que se refere à organização do SUS, em todas as esferas de governo, é preciso combater a ausência de criatividade na gestão da coisa pública, a qual, via de regra, gera a paralisia, a falta de ousadia em inovar e a receita de um “remédio único” – o mercado – para resolver quaisquer dificuldades que se apresentem. É preciso lembrar a todos que, no caso dos Sistemas de Saúde nacionais, o pior exemplo do mundo é justamente o Sistema de Saúde nacional, individualista e de mercado, dos Estados Unidos da América e os melhores exemplos são os diversos Sistemas de Saúde nacionais socializados, portanto, universais.

*Ricardo Menezes é médico sanitarista

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